A (des)Ordem dos Psicólogos
A Psicologia em Portugal vive desde a sua “nascença”, enquanto ciência independente, numa constante luta pela sua afirmação. Ao longo de qualquer coisa como 4 décadas tem paulatinamente conquistado o seu lugar na nossa sociedade, apesar de um longo caminho ainda ter a percorrer.
Olhando para esse percurso com que ainda se depara, saltam à vista algumas situações, como por exemplo, a preocupante qualidade e credibilidade do ensino superior da Psicologia, bem como a qualidade e credibilidade de grande parte da oferta de formação complementar existente, sem esquecer é claro a reduzida produção de investigação cientifica de qualidade reconhecida. É também preocupante a ausência do devido reconhecimento por parte da classe politica e entidades governamentais, bem como, da opinião publica sobre a “nossa” ciência e, com uma análise mais profunda, certamente surgiria uma grande panóplia de outras questões que urgem ser reflectidas.
No entanto, se olharmos para a Psicologia enquanto ciência independente, há também muitas razões de orgulho e satisfação e este é certamente o campo da Psicologia que com melhor “saúde” vive no nosso país.
Por outro lado, se olharmos para a Psicologia enquanto classe profissional as coisas mudam de figura. Como classe profissional a Psicologia vive desde sempre em profunda consternação, não tendo o reconhecimento que lhe é devido, não tendo a regulamentação que carece, vivendo, no fundo, aos constantes trambolhões.
Os problemas a este nível são inúmeros… Com uma pequena análise superficial do estado da nossa classe profissional, com facilidade constatamos que um longo caminho há a percorrer. Vejamos. Somos a classe de licenciados com maior número de desempregados em Portugal; vivemos constantemente em situações laborais precárias - com o recibo verde a imperar, coadjuvado pelo regime de voluntariado e seguido bem de perto pelo estágio profissional; o nosso Estado ainda não percebeu a importância do Psicólogo na economia do sistema nacional de saúde – refiro-me à prevenção da doença e à promoção da saúde – não havendo por isso concursos para integração da nossa classe nos organismos públicos de saúde; temos “colegas” a exercer as nossas funções que nunca estudaram Psicologia, ou então fizeram apenas um mestrado, pós-graduação ou doutoramento em Psicologia; no sistema judicial o Psicólogo continua a ser praticamente uma miragem, apesar das evoluções que a este nível se têm registado nos últimos anos; na educação assistimos a colegas que têm sobre a sua alçada todo um agrupamento de escolas, e às vezes mais do que um, perfazendo totais de alunos acima dos 1500 indivíduos… enfim a lista de situações é interminável…
Mas o apontar dos problemas, tal como anteriormente referi, é simples e está ao alcance de quem o quiser fazer. Assim, o importante é mesmo entender o que está por trás de toda esta situação para então podermos encetar esforços na resolução dos mesmos.
É aqui que me tornarei um pouco mais critico e talvez, porque não, mais polémico. Na minha humilde opinião a “culpa” de toda esta situação é apenas e tão só NOSSA! É dos Psicólogos…
Pondo a mão na consciência, o que fizemos enquanto classe para que o panorama fosse diferente? Alguma vez conseguimos juntar-nos e fazer ouvir a nossa voz? Por algum momento estivemos de acordo quanto ao caminho a percorrer? Alguma vez estivemos dispostos a ouvir o colega do lado para saber o seu ponto de vista sobre estas questões?
Sinceramente não me parece…
Ao longo dos anos os Psicólogos têm batalhado arduamente, isso é verdade, mas não pelos interesses da classe profissional. Têm batalhado pelos interesses da instituição que representam ou representaram, da associação na qual acreditam por este ou por aquele motivo, têm lutado pela credibilização da sua instituição de ensino superior através da descredibilização das outras instituições de ensino superior… resumindo, têm havido constantes batalhas pelos interesses de cada um, mas nunca ouve uma guerra pelos interesses comuns.
Se nos compararmos a outras classes profissionais, com facilidade verificamos que somos uma classe desunida, somos uma classe sem sentido de colectivo, somos uma classe sem sentido de Lobbing Profissional. E este é sem dúvida um dos maiores, ou mesmo o maior problema que a Psicologia enfrenta. Enquanto Nós, os Psicólogos, não nos consciencializarmos que temos que nos unir, que temos que dialogar promovendo o debate, que temos que olhar para a Psicologia em si como um todo, que é o objectivo pelo qual temos que lutar, continuaremos uma classe fragilizada, sem soluções para os seus próprios problemas.
Ao longo de muitos anos, a criação da Ordem dos Psicólogos, foi encarada como a solução para que finalmente a prática profissional da Psicologia fosse regulamentada, regularizada e organizada, atingindo assim a capacidade de se tornar uma classe profissional forte e com poder de argumentação junto da nossa sociedade. Pessoalmente acredito que uma Ordem bem estruturada, pensada por todos aqueles que a ela estão e estarão ligados – os Psicólogos e os Estudantes de Psicologia – tem a capacidade para ser esse veiculo de tessitura que todos almejamos.
Contudo é com profundas reticencias que olho para a recém-criada Ordem dos Psicólogos. Seria de esperar que, após tantos anos de trabalho e espera, para que esse objectivo fosse alcançado, a Ordem fosse criada com cabeça, tronco e membros mas, para grande tristeza minha, não me parece que isso esteja a acontecer.
Em primeiro lugar não sinto que a criação da Ordem esteja a ser alvo do saudável debate, discussão e análise no seio daqueles que são os principais interessados: os Psicólogos e futuros Psicólogos. Sinto um estranho secretismo em todo este processo e não vejo de que forma seja proveitosa esta ausência de troca de ideias… somente o poderá ser se continuarmos com o velho “fado” da Psicologia no nosso país, o dos interesses individuais ou de pequenos grupos. Em segundo lugar, e este preocupa-me ainda mais, é facilmente observável que o Ordem está a ser criada a todo e qualquer custo, e que neste momento é mais importante que ela “nasça” do que ela “nasça bem”, e como diz a sabedoria popular: “pau que nasce torto…” .
Podem legitimamente colocar-me a questão: “mas porque é que está a nascer torta?”. A resposta é simples e surge logo com o Decreto-lei Nº 57/2008 de 4 de Setembro.
Assim, e tal como referido no artigo 6º Entrada em Vigor, este decreto de lei entrou em vigor 30 dias após a sua publicação, ou seja, este decreto-lei entrou em vigor a 4 de Outubro de 2008, aproximadamente. No mesmo decreto-lei, artigo 82º Comissão Instaladora, fica disposto que o governo teria o prazo de 60 dias para fazer a nomeação da Comissão Instaladora, e todos sabemos que esta nomeação apenas foi feita a 14 de Abril de 2009, cerca de 4 meses após o prazo legalmente estabelecido. Logo aqui, o nosso governo começou por incumprir com o que ele próprio estipulou.
Se avançarmos um pouco e olharmos para a questão da inscrição na Ordem verificamos um atropelo tremendo à lei geral do ensino superior e, nomeadamente, à adequação do ensino superior ao Tratado de Bolonha. No artigo 51º dos presentes estatutos da Ordem dos Psicólogos, que passo a citar: “Podem-se inscrever na ordem: 1 – a) os mestres em psicologia que tenham realizado estudos superiores de 1º e 2º ciclo em Psicologia”. Até aqui tudo bem, este ponto refere-se a todos os psicólogos que tenham concluído os seus estudos em instituições de ensino superior que tenham já os seus cursos adequados ao regime de Bolonha. O problema surge na alínea “b) Os licenciados em Psicologia que tenham realizado uma licenciatura com a duração de quatro ou cinco anos, anterior à data de 31 de Dezembro de 2007”. Ora, é sabido que a lei geral do ensino superior, no que se refere à adequação ao Tratado de Bolonha, estipula que o ano lectivo em que todos os cursos têm que estar adequados a Bolonha é 2009/2010, ou seja, a lei geral do ensino superior estipula que em 2008 e em 2009 podem-se formar licenciados com cursos de 4 e 5 anos, situação que se passa em alguns cursos de Psicologia. Estes Psicólogos recém-licenciados em 2008 e 2009, à luz dos presentes estatutos, não podem inscrever-se na Ordem apesar de serem Psicólogos devidamente formados e licenciados.
Outro aspecto que me parece não ter sido devidamente reflectido é a questão dos Estágios Profissionais para admissão à ordem. Pessoalmente estou inteiramente de acordo com a realização de estágios profissionais para ingresso na Ordem, principalmente nos casos em que os cursos superiores não garantem estágio curricular. Contudo, da forma que os estatutos definem a necessidade dos estágios profissionais, eu questiono-me como será possível a realização dos referidos estágios? Vejamos, todos os “recém-psicólogos” que terminaram os seus estudos superiores em 2009, mais todos aqueles que terminaram os seus estudos em 2008 e mesmo a esmagadora maioria dos psicólogos que terminaram os seus estudos em 2007 terão que efectuar um estagio profissional de ingresso na Ordem. Se pensarmos que por ano se formam cerca de 1000 Psicólogos estamos a falar de um numero aproximado de 3000 estágios profissionais!!!!! Eu pergunto-me se existem 3000 postos de trabalho em Psicologia no nosso país? Não me parece…
Esta situação acontece única e simplesmente por falta de reflexão. Bastava que o decreto-lei aprovado em Setembro não tivesse efeitos retroactivos e seriam “apenas” cerca de 1000 estágios profissionais.
Ainda a este nível surgem outras questões a ser levantadas, nomeadamente, como se procederá com todos aqueles que fazem parte deste lote de 3000 Psicólogos e que já se encontram a trabalhar? esses postos de trabalho servem como estágio? E com que critérios se decidirá se servem ou não? Caso não sirvam, estes psicólogos terão que abandonar os seus postos de trabalho para efectuarem um estágio que nem sequer sabem se será remunerado? Ou ficam sem poder exercer a sua actividade de psicólogo? Infelizmente tive já oportunidade de colocar estas mesmas questões a quem de direito e a resposta que obtive é que não me sabiam responder…
Uma outra questão que gostaria de levantar passa, não só pelos estágios, como também pelos colégios de especialidade. Com a adequação a Bolonha os recém-formados têm todos uma área bem definida, Forense, Educacional, Clínica e da Saúde, etc. etc., estes psicólogos têm que efectuar estágio profissional dentro da sua área de formação? os estágios profissionais estarão desligados dos colégios de especialidade? Ou poderão estes psicólogos realizar um estagio em qualquer área de especialização?
Ainda no que respeita aos colégios de especialidade surgem-me outras questões. Poderá um psicólogo estar incluído em mais do que um colégio de especialidade? Será obrigatória a inclusão num colégio de especialidade para o exercício dessa mesma especialidade?
Todavia, considero que a resposta a estas questões carece de menor urgência, uma vez que os colégios de especialidade ainda serão criados, não estando para breve essa criação (espero eu).
Um outro exemplo do descuido a que estes estatutos foram sujeitos é o Artigo 76º Deveres Gerais, “O psicólogo, na sua actividade profissional, deve: d) Exercer a sua actividade em áreas dentro da psicologia para as quais não tenha recebido formação específica;”. Acredito que só mesmo por descuido tamanha singularidade seja possível.
Caros colegas, este são apenas alguns exemplos que, na minha opinião, demonstram a forma como esta Ordem está a ser criada: na completa Desordem.
Sinto, para grande pesar meu, que quem comanda actualmente os destinos da Ordem dos Psicólogos se deixou embrenhar de tal forma nessa criação que já não se preocupa se está a criar bem ou mal, pois o que importa é que seja criada. Deixo, portanto, um apelo à Comissão Instaladora que permita o debate e a troca de ideias entre todos os psicólogos, que ouça quem quer ajudar, que tenha a abertura de ouvir diferentes opiniões, pois só assim poderemos ter uma Ordem com ordem.
Poderão pensar que sou um critico da criação da Ordem dos Psicólogos. Quero esclarecer que sou um acérrimo defensor da sua criação e acredito piamente que a Ordem poderá ser o organismo que irá trazer à nossa classe o sentido de Lobbing Profissional que tão desesperadamente necessitamos. Acredito que uma ordem forte pode trazer a regulamentação que a nossa Profissão exige, acredito que o dia 4 de Setembro de 2008 será um dia a recordar no futuro como um dia muito especial para a nossa Ciência e Classe Profissional. Mas tenho que me manter alerta pois não vejo que o rumo traçado esteja a ser o mais correcto...
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